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Editado por Harlequin Ibérica.

Uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2010 Susan Wiggs

© 2015 Harlequin Ibérica, uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

Toda uma vida, n.º 31 - Julho 2015

Título original: The Summer Hideaway

Publicado originalmente por Mira Books, Ontario, Canadá

 

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial.

Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), acontecimentos ou situações são pura coincidência.

® Harlequin, HQN e logótipo Harlequin são marcas registadas propriedades de Harlequin Enterprises Limited.

® e ™ são marcas registadas por Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença.

As marcas em que aparece ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

Imagem de portada utilizada com a permissão de Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos estão reservados.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-7111-3

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S. L.

Sumário

 

Página de título

Créditos

Sumário

Prólogo

Um

Dois

Três

Quatro

Cinco

Seis

Sete

Oito

Nove

Dez

Onze

Doze

Treze

Catorze

Quinze

Dezasseis

Dezassete

Dezoito

Dezanove

Vinte

Vinte e um

Vinte e dois

Vinte e três

Vinte e quatro

Vinte e cinco

Vinte e seis

Vinte e sete

Vinte e oito

Vinte e nove

Trinta

Epílogo

Se gostou deste livro…

 

Procura-se enfermeira pessoal para trabalhar no estado de Nova Iorque.

Interessadas contactar godfrey@georgebellamy.com.

Cavalheiro de idade avançada procura cuidados profissionais vinte e quatro horas por dia.

Requisitos:

Entre 25 e 35 anos.

Sexo feminino (fundamental).

Atitude positiva e sentido de aventura.

Gosto por crianças.

Disponibilidade para mudar de residência.

Sem fardos emocionais.

Conhecimentos de enfermagem. Valoriza-se diploma oficial.

Oferece-se:

Seguro médico, dentário e oftalmológico. Plano de reforma.

Pagamentos semanais.

Alojamento junto do lago Willow, em plena reserva natural das Catskills.

 

Prólogo

 

Vale de Korengal, província de Kunar, Afeganistão

 

O pequeno-almoço consistia em batata frita palha, que sabia realmente a palha, ovos mexidos secos e um café aguado com uma substância esbranquiçada. Tudo servido numa bandeja compartimentada e a ser consumido num refeitório ruidoso.

Depois de dois anos de serviço, Ross Bellamy estava farto daqueles pequenos-almoços. Felizmente para ele, aquele era o seu último dia no Afeganistão.

O dia começava como qualquer outro: insípido e aborrecido, mas sob a constante tensão de uma ameaça iminente. Os sons do rádio acompanhavam o ruído dos talheres, tão familiar que já mal os ouvia. Na sala de comunicações, um elemento da unidade Dustoff estava alerta, à espera da próxima chamada para uma evacuação médica.

Havia sempre uma próxima chamada. Um piloto da unidade de evacuação como Ross recebia-as diariamente, inclusive a cada hora.

Quando o walkie-talkie que tinha à cintura começou a apitar, esqueceu a comida de imediato. O toque era um sinal para que o pessoal de prevenção deixasse tudo, fosse um garfo cheio de carne misteriosa a caminho da boca, um jogo de cartas mesmo que estivesse a ganhar, uma carta para uma namorada a meio de uma frase que talvez nunca se completasse, um sonho com o lar, uma oração a meio ou um barbeado pela metade. A unidade de evacuação médica orgulhava-se do seu tempo de reação. Cinco minutos, seis no máximo, desde que se recebia a chamada até entrarem em ação. Homens e mulheres com comida na boca ou acabados de sair do duche assumiam os papéis que se tinham tornado tão familiares para eles como as botas com biqueira de aço.

Ross cerrou os dentes. Perguntou-se o que lhe proporcionaria aquele dia e esperava acabá-lo sem que o matassem. Necessitava desesperadamente da licença para voltar para casa. O seu avô estava doente e suspeitava que o estado dele era mais grave do que a sua família lhe dissera. Custava-lhe imaginar o seu avô doente. Sempre fora um homem forte e saudável, cheio de vida e paixão, amante de viagens e com uma gargalhada íntima e contagiante. Era mais do que um avô para Ross, tinha estabelecido com ele um vínculo muito especial que ainda perdurava.

Seguindo um impulso, pegou na última carta do seu avô e meteu-a no bolso do casaco, junto do coração. O gesto fê-lo sentir-se ainda mais angustiado.

– Vamos, Leroy! – avisou-o Nemo, o chefe da unidade, e pôs-se a cantar, como fazia sempre, os primeiros versos de Get Up Offa That Thang.

Leroy era a alcunha que Ross tinha recebido no exército, quando alguns dos seus companheiros tinham descoberto o seu passado de menino rico, colégios privados, o seu diploma da Ivy League, a sua família rica e influente… Tudo isso o convertia num alvo perfeito para brincadeiras no arrevesado mundo do exército. Nemo começara a chamar-lhe «o pequeno lorde Fauntleroy». A alcunha reduzira-se a «Leroy» e assim ficara.

– Vou já – disse Ross, dirigindo-se para o heliporto. Ele e Ranger encarregar-se-iam de pilotar o aparelho.

– Boa sorte com o novato – desejou-lhe Nemo.

O maldito novato… Ross obrigou-se a ser amável. Ao fim e ao cabo, se não fossem os novatos, ficaria ali para sempre. E esse «para sempre» estava prestes a acabar, segundo a ordem que acabava de receber. Numa questão de dias, voltaria para os Estados Unidos… Se não lhe acontecesse nada naquela última missão.

O novato era, afinal, uma rapariga. Florence Kennedy, enfermeira de Newark, Nova Jersey. Tinha a típica expressão decidida dos novatos, uma máscara frágil de coragem que mal disfarçava o verdadeiro terror interior.

– Do que estás à espera? – gritou Nemo ao passar por ela, acompanhando a pergunta de uma obscenidade típica do jargão militar. – Mexe esse cu!

Ela permaneceu onde estava, sem intenção de seguir Nemo.

– O que se passa? – perguntou-lhe Ross.

– Desculpe, senhor, mas… Não gosto desse tipo de vocabulário.

Ross deixou escapar uma gargalhada brusca.

– Estás prestes a sobrevoar um território em guerra e só te preocupam os palavrões? É melhor que te habitues, porque não há um único soldado que não os use vinte vezes em cada frase. E não sei quanto a ti, mas não me parece que seja assim tão grave.

A rapariga parecia prestes a chorar. Ross tentou pensar em algo para a animar, mas não lhe ocorreu nada. Desde quando tinha perdido a capacidade de falar de forma correta e educada?

Desde que se tornara insensível a tudo.

– Vamos – foi tudo o que disse e continuou a andar para o helicóptero, sem olhar para trás.

O chefe de terra passou revista e toda a gente subiu a bordo. Para ganhar tempo, colocariam os coletes e os capacetes dentro do helicóptero.

Ross recebeu os detalhes da missão pelo auricular enquanto verificava os comandos. Era o tipo de aviso mais temido pelos soldados: vítimas militares e civis, com a presença do inimigo na área. Helicópteros Apache escoltariam as ambulâncias aéreas, já que as cruzes vermelhas pintadas nas portas não pareciam ter o mínimo significado para o inimigo. Deviam agir depressa e sem cometer um único erro, pois, para um soldado ou civil que estivesse ferido em terra, eles eram a sua única esperança.

Poucos minutos depois, dirigiam-se a toda a velocidade para o norte, sobrevoando as montanhas, os bosques e os rios de Kunar. O ruído ensurdecedor dos rotores e as ordens estritas limitavam a conversa ao mínimo indispensável e só através dos auriculares.

Ross estava tenso e nervoso. Todos os dias, enfrentavam um perigo desconhecido, mas Ross nunca tinha conseguido habituar-se.

«É a tua última missão», recordou a si mesmo. «Não faças asneira.»

O vale de Korengal era um dos lugares mais bonitos do planeta. E também um dos mais perigosos. Não era fora do comum o lançamento de mísseis terra-ar, disparos de morteiros ou cordas estendidas entre os cumes das montanhas para apanhar as aeronaves. De repente, da paisagem idílica começaram a surgir disparos iluminados e colunas de fumo. Cada uma delas representava uma arma inimiga apontada aos helicópteros.

Ross tinha memorizado o intervalo entre o brilho de um disparo e o impacto do projétil. Três batimentos do coração e tudo podia acabar para sempre.

Os helicópteros de combate abriram fogo sobre as chamas, eliminando temporariamente a ameaça inimiga e permitindo a aterragem dos helicópteros médicos.

Ross e Ranger concentraram-se em percorrer a distância que os separava da origem da chamada. Apesar da informação recebida, nunca tinham a certeza do que estaria à espera deles. Metade dos seus voos tinham como objetivo evacuar civis afegãos e pessoal de segurança. As infraestruturas e as condições sanitárias do país estavam num nível tão lamentável que recebiam constantemente pedidos para transportar todo o tipo de feridos e doentes, fosse por confrontos armados, acidentes ou inclusive mordidelas de cães. A unidade de Ross já tinha presenciado todos os horrores e calamidades possíveis, mas, pelos vistos, aquilo não seria um simples transporte de feridos para a base aérea de Bagram. Aquela região era conhecida como o Vale da Morte, o santuário dos talibãs.

O helicóptero aproximou-se do ponto de recolha e iniciou a descida. As copas dos pinheiros agitavam-se furiosamente sob o rotor, oferecendo vislumbres do terreno. Uma série de cabanas com teto de barro apinhava-se entre as paredes do vale. Ross viu vários civis e soldados. Alguns procuravam o inimigo, enquanto outros protegiam os feridos à espera de ajuda.

Mais brilhos apareceram nas encostas e Ross compreendeu que havia muitas armas lá em baixo. Os helicópteros estavam muito afastados uns dos outros. O risco de serem atingidos por disparos era muito grande e, como piloto, tinha a decisão nas suas mãos. Se retirar-se e proteger a sua equipa ou arriscar-se e salvar os que estavam em terra. As decisões no campo de batalha eram sempre difíceis, mas não havia tempo para pensar.

Aproximou-se o máximo possível com o helicóptero, mas não pôde aterrar. Ranger abanou energicamente a cabeça. O terreno era muito acidentado. Teriam de descer uma maca.

O chefe abriu a porta e deslizou o cabo pelas mãos enluvadas, até que a maca pousou no chão. Nela foi depositado o soldado com ferimentos mais graves e Ross levantou voo enquanto a maca subia.

A maca quase tinha chegado ao helicóptero quando Ross viu outra coluna de fumo. Um foguete fora disparado contra eles e, com o helicóptero suspenso a uma altura de quinze metros, não havia tempo para uma manobra evasiva. O pequeno projétil atingiu o aparelho em cheio.

Um brilho ofuscante encheu a cabina, seguido de uma chuva de estilhaços, tinta, peças metálicas e sangue. Um segundo depois, uma rajada de balas varreu o helicóptero, abrindo buracos na fuselagem. O aparelho tremeu fortemente e peças de equipamento saltaram por toda a parte, incluindo o rádio, no preciso instante em que Ross estava a transmitir o pedido de socorro. O combustível derramava-se sobre o painel de comandos.

Ross sentia os impactos das balas no seu banco, na chapa e no vidro. Algo o atingiu por trás com tanta força que o deixou sem fôlego. «Não morras!», ordenou a si mesmo. «Nem penses em morrer agora!» Devia manter-se vivo a todo o custo, pois, se morresse, os outros também morreriam. Era uma boa razão para se manter com vida e continuar a lutar.

Não era a primeira vez que aterrava um helicóptero que fora atingido, mas nunca em condições tão adversas, sem água, nem clareiras onde pousar. Só tinha uma oportunidade e não podia permitir-se o mínimo erro. Não sabia se a maca tinha conseguido chegar ao helicóptero e assustava-o a ideia de que o soldado ferido ainda estivesse pendurado no ar.

Ranger tentou usar o outro rádio. O rasto vermelho de uma granada de fumo apareceu brevemente no ar, antes de o vento o dissipar. Ross viu uma clareira no solo, ao mesmo tempo que eram atingidos por outra rajada de tiros.

O painel desfez-se em estilhaços que se cravaram no seu ombro e no capacete. O helicóptero começou a andar descontroladamente às voltas, como se estivesse numa liquidificadora enorme, emitindo sons agonizantes.

Na descida vertiginosa, Ross deu por si a olhar aleatoriamente para objetos: um cartaz publicitário de leite em pó rasgado, uma baliza de futebol torcida… O helicóptero bateu contra o chão com um grande estrondo, fazendo saltar mais peças metálicas. Ross sentiu o embate em todos os ossos do seu corpo. Os dentes rangeram-lhe. Um rotor desprendeu-se e destruiu tudo à sua passagem. Ross entrou em ação antes que tivesse parado por completo. O cheiro do combustível asfixiava-o. Estendeu uma mão e agarrou Ranger pelo ombro. Graças a Deus, parecia estar vivo!

Nemo estava a tentar tirar o arnês. Os cabos tinham-se enrolado e Nemo ainda estava preso a uma braçadeira. Ranger foi ajudá-lo e os dois tiraram o ferido na maca, que felizmente fora içada antes do impacto.

– Kennedy! – gritou Ross, ajoelhando-se junto dela. – Estás a ouvir-me, Kennedy? – a rapariga estava imóvel, deitada de lado. – Mexe-te! Temos de sair daqui.

«Não morras», pensou. «Por favor, não morras.»

Odiava aquela situação. Já muitas vezes virara um soldado para descobrir que já estava morto.

– Ken…

Um palavrão saiu dos lábios da novata, que se endireitou e olhou para Ross. A expressão de inocência esfumou-se do seu rosto, substituída por um olhar de determinação.

– Deixe de perder tempo, chefe – disse. – Temos de sair daqui.

Os quatro agacharam-se sob o teto amolgado do helicóptero. As balas tinham perfurado a cruz vermelha e a cauda, e o chão estava coberto de cartuchos das Kalashnikov inimigas.

Os helicópteros Apache tinham desfeito a formação e davam caça aos talibãs que se escondiam nas encostas. O outro helicóptero médico tinha fugido e, sem dúvida, estaria a pedir auxílio à base. Por toda a parte, erguiam-se colunas de fumo preto produzidas pelos morteiros.

Sem evacuação à vista, a equipa tinha de procurar o melhor refúgio possível. Mantendo a cabeça agachada, transportaram a maca até à casa mais próxima. Através do pó e do fumo, Ross viu um soldado inimigo, armado com uma Kalashnikov, a aproximar-se da mesma casa que eles.

– Eu encarrego-me dele – disse em voz baixa a Nemo.

Ao enfrentar um inimigo armado, só contava com o elemento surpresa, por isso, não podia desperdiçar nem um segundo. Era ali que se demonstrava o treino. Aproximou-se do inimigo por trás, sem denunciar a sua presença, agarrou-o pelos tornozelos e puxou-o com força para trás, fazendo com que o talibã caísse de bruços ao chão. Antes que soubesse quem o tinha atacado, Ross já o deixara fora de combate, atingindo-o nos olhos, no pescoço e entre as pernas. Atou-lhe rapidamente as mãos, confiscou-lhe a arma e arrastou-o para o interior da casa.

Lá, encontraram um contingente de soldados americanos e afegãos.

– Dustoff 91 – disse Ranger em jeito de apresentação. – E receio que vão ter de esperar por outro transporte.

O soldado capturado gemeu de dor e estremeceu no chão.

– Onde aprendeu essa técnica? – perguntou um dos soldados americanos.

– O combate corpo a corpo é uma especialidade das equipas de evacuação médica – disse Nemo, apertando a mão a Ross.

Um murmúrio de vozes em pastó e em inglês elevou-se no ar.

– Estamos perdidos – disse um soldado de aspeto aturdido e exausto. Tal como os seus companheiros, parecia não se lavar há várias semanas. Usava uma coleira contra pulgas para cão, sinal de como a vida era difícil naquele lugar. O rapaz, cujo rosto ainda conservava os traços da adolescência, mas cujos olhos tinham perdido todo o brilho, falava com voz seca e apagada, como se todas as suas ilusões tivessem morrido.

– Vamos dar uma olhadela aos feridos – sugeriu Kennedy, que parecia desesperada por fazer alguma coisa.

O soldado levou-a até uma fila de pessoas deitadas de costas no chão. Um adolescente afegão ouvia o que parecia uma oração através de um iPhone e um homem gemia e agarrava-se à perna enfaixada, mas o resto estava inconsciente. Kennedy verificou os sinais vitais de todos e olhou à volta.

– Preciso de alguma coisa onde escrever.

Ross tirou um marcador da caixa de primeiros socorros.

– Escreve aqui – disse, assinalando o peito nu do adolescente.

Ela hesitou por um instante, mas começou a escrever na pele do rapaz. Do exterior chegaram mais disparos e, ao fim do que pareceu uma eternidade, mas que não deviam ter sido mais de vinte minutos, chegou outro helicóptero de evacuação. Um médico desceu por um cabo e o aparelho afastou-se para procurar um lugar onde aterrar. No interior da cabana, toda a gente se dispôs a ajudar o pessoal médico.

Ross afastou alguns cadáveres. Não sentia nada. Não podia permitir-se. O pior ainda estava por chegar.

– Vê se consegues estancar esta hemorragia – pediu-lhe o médico recém-chegado. – Aperta alguma coisa contra a ferida.

Ross obedeceu e arrancou uma manga para fazer pressão contra o braço ensanguentado. Só então se apercebeu de que o braço pertencia a um idoso a quem um menino cantava em voz baixa ao ouvido.

Tinha de encontrar a sensibilidade que ainda lhe restava. Necessitava-a do mesmo modo que o idoso necessitava da mão do menino na face.

Família… A família era o que dava sentido à vida. A única coisa que importava quando tudo o resto desaparecia. Além do seu avô, Ross não tinha ninguém e odiava aquela sensação de vazio emocional.

Os disparos dos insurgentes cessaram. Chegaram mais dois helicópteros e o pessoal médico correu com as macas para se juntar a eles. Os feridos foram carregados em macas ou em braços. Aqueles que conseguiam andar subiram pelo seu próprio pé para os helicópteros, frenética e desordenadamente. O primeiro aparelho levantou voo com uma inclinação brusca e elevou-se rapidamente no ar.

Ross entrou no segundo e prendeu-se a uma braçadeira. O inimigo recomeçou a disparar e as balas ricochetearam nos patins de aterragem. O voo decorreu entre pó, fumo e ruído, mas, por fim, felizmente, Ross reconheceu nos lábios do piloto as palavras mágicas de que todos estavam à espera: «Dustoff a aproximar-se da base».

O combustível estava quase a acabar, mas conseguiram aterrar sem problemas e o pessoal de terra encarregou-se imediatamente dos feridos. Ross usou um pouco de Betadine e algumas ligaduras, e entrou no acampamento. O sol abrasava-lhe o braço do qual arrancara a manga. Estava enjoado, com a sensação de ter estado no inferno e ter regressado com vida.

Ainda nem sequer era meio-dia.

 

 

Graças à sua rapidez e eficácia, a unidade de evacuação de Ross já tinha salvado muitas vidas. O normal eram vinte e cinco minutos do campo de batalha ao hospital. Ross sempre se orgulhara do seu trabalho, mas estava na hora de seguir em frente com a sua vida. Estava mais do que preparado para o fazer.

À volta da messe havia muita atividade. Outras duas equipas médicas estavam a preparar-se para sair.

– Eh, Leroy, parece que o Natal chegou mais cedo para ti este ano – disse-lhe Nemo, devorando uma fatia de piza. – Ouvi dizer que conseguiste a licença.

Ross assentiu. Sentia uma vaga de algo estranho, não exatamente de alívio. Era finalmente uma realidade. Ia finalmente voltar para casa.

– O que vais fazer quando estiveres em casa? – quis saber Nemo.

Começar de novo, pensou Ross. Fazê-lo bem daquela vez.

– Tenho grandes planos.

– Tal como todos – disse Nemo, rindo-se e dirigindo-se para os duches.

Quando se vivia num inferno como aquele, a única coisa que se pretendia era sobreviver durante os dez minutos seguintes. Mas, agora, devia começar a pensar mais à frente.

Viu Florence Kennedy sentada à sombra. Estava a beber de um cantil e chorava em silêncio.

– Olá… Lamento ter gritado contigo – disse-lhe Ross.

Ela olhou para ele com os olhos avermelhados pelas lágrimas.

– Hoje, salvou-me o couro.

– É um couro muito bonito.

– Cuidado com o que diz, chefe – sorriu-lhe através das lágrimas. – Fico a dever-lhe uma.

– Só estava a fazer o meu trabalho.

– Parece que vai para casa.

– Sim.

Ela tirou um cartão do bolso e escreveu um endereço de correio eletrónico.

– Talvez possamos manter-nos em contacto.

– Talvez – murmurou ele. As coisas não funcionavam daquela maneira, mas ela era demasiado nova para o saber.

Virou o cartão e leu o nome impresso.

– Tyrone Kennedy… Do gabinete do procurador-geral de Nova Jersey. Significa isto que estou metido em apuros?

– Não. Mas, se alguma vez tiver problemas em Nova Jersey, telefone ao meu pai. Tem bons contactos.

– E, no entanto, tu estás aqui – comentou ele. Talvez Florence fosse como ele naquele aspeto. Uma pessoa sem rumo que precisava de fazer algo com sentido.

Ela encolheu os ombros.

– Só estou a dizer que, se alguma vez precisar de alguma coisa de mim, não hesite em pedir – fechou o cantil e dirigiu-se para o refeitório. Parecia uma mulher muito diferente da novata que Ross conhecera horas antes.

Surpreendeu-se ao ver que a mão lhe tremia enquanto guardava o cartão no bolso. Além de uns quantos hematomas e arranhões, tinha saído ileso da missão, embora lhe doesse o corpo todo. As terminações nervosas voltavam a enviar sinais ao cérebro. Depois de passar vinte e três meses a insensibilizar-se contra todo o tipo de dor, começava a sentir novamente.

 

Um

 

Condado de Ulster, Nova Iorque

 

Para um idoso agonizante, George Bellamy pareceu a Claire um homem surpreendentemente alegre. No rádio do carro estava a dar o Hootenanny, o programa mais estúpido que Claire alguma vez tinha ouvido, mas George parecia achá-lo muito divertido, como demonstrava a sua gargalhada, tão peculiar como contagiante. Começava como um murmúrio suave e ia aumentando de intensidade até se converter numa manifestação de pura felicidade.

Mas não era só pelo programa de rádio. Acabavam de comunicar a George que o seu neto ia voltar para casa do Afeganistão e estava impaciente por voltar a vê-lo.

Pelo bem de todos, Claire esperava que aquele reencontro tivesse lugar muito em breve.

– Estou desejoso de ver Ross – disse George. – É o meu neto. Acaba de deixar o Exército e já deve estar a caminho de cá.

– Certamente, virá ver-te diretamente – corroborou ela, como se George não lhe tivesse dito exatamente o mesmo uma hora antes.

A estrada discorria entre uma paleta radiante de cores primaveris: o verde exuberante das folhas, o amarelo brilhante dos narcisos e o violeta intenso das flores silvestres. Claire perguntou-se se George pensaria que aquela seria a última primavera dele. A angústia dos seus pacientes perante o inevitável era insuportável para ela, mas, por enquanto, George não parecia estar a sofrer. Apesar de terem acabado de se conhecer, tinha a sensação de que George Bellamy seria um dos seus pacientes mais agradáveis.

Com as suas calças pulcramente engomadas e o seu polo impecável, tinha o aspeto de qualquer homem endinheirado que ia passar algumas semanas no campo. O cabelo voltava a crescer-lhe depois de ter deixado a quimioterapia e a sua pele oferecia uma cor muito saudável.

Como enfermeira especializada em cuidados paliativos para doentes terminais, Claire já conhecera todo o tipo de pacientes e as respetivas famílias. Mas ainda não conhecera nenhum parente de George, já que os seus filhos viviam muito longe. Naquele momento, eram só eles os dois.

Apontou para o bloco que George tinha no regaço, cujas páginas estavam cheias de uma letra fina e elegante.

– Parece que te mantiveste muito ocupado.

– Estive a fazer uma lista de coisas pendentes. Parece-te uma boa ideia?

– Acho que é uma ideia fantástica, George. Toda a gente tem uma lista de coisas pendentes, mas quase todos a guardamos aqui – tocou na têmpora.

– Já não confio assim tanto na minha cabeça – admitiu ele, referindo-se indiretamente ao glioblastoma multiforme, o grave tumor cerebral que tinha. – Portanto, decidi anotar tudo – folheou as páginas do bloco. – É uma lista muito longa – acrescentou com tom ligeiramente envergonhado, como se estivesse a desculpar-se. – Talvez não consiga fazer tudo.

– Vamos fazer o melhor que conseguirmos. Eu ajudo-te – disse ela. – É para isso que estou aqui – disse ela, sem desviar o olhar da estrada. Não estava habituada a estradas rurais e, comparadas com o bulício e a poluição de Manhattan ou de Nova Jersey, as colinas verdes e as montanhas escarpadas do condado de Ulster pareciam-lhe uma paisagem muito estranha, quase irreal. – É bom ter muitas coisas pendentes – disse. – Assim, não tens tempo para ficar entediado.

Ele pôs-se a rir.

– Nesse caso, espera-nos um verão muito ocupado.

– Teremos o verão que tu quiseres.

George suspirou e continuou a folhear as páginas.

– Oxalá tivesse pensado nestas coisas antes de saber que ia morrer…

– Todos vamos morrer – recordou-lhe ela.

– Dá gosto contar com uma enfermeira tão otimista.

– De certeza que uma enfermeira mais otimista te tiraria do sério.

George e Claire acabavam de se conhecer, mas ela tinha o dom de calar as pessoas. Era uma questão de sobrevivência. Numa ocasião, tivera de mudar drasticamente de vida por se ter enganado em relação a uma pessoa.

George Bellamy era um homem culto e circunspecto, mas parecia ser uma alma solitária à procura de… algo. Claire ainda não tinha descoberto do que se tratava, ainda não sabia muito dele. Era um afamado correspondente aposentado que tinha passado a vida quase toda em Paris e a viajar pelo mundo. Mas agora, no fim da vida, queria visitar um lugar muito diferente das grandes urbes.

O fim de uma vida era tão variado como a forma de a ter vivido. Algumas acabavam com discrição, outras com um dramatismo exagerado e quase todas com grande pesar. Os remorsos eram o veneno que matava lentamente a alegria de uma pessoa e surpreendia-a sempre presenciar como uns quantos remorsos bastavam para amargurar uma existência feliz. Pelo bem de George, esperava que a sua última viagem lhe oferecesse a tranquilidade para morrer em paz.

Muita gente pensava que os moribundos sabiam as respostas às grandes questões transcendentais. Achavam que a iminência da morte lhes outorgava uma sabedoria espiritual muito mais profunda do que a dos vivos. Graças à sua profissão, Claire tinha aprendido que aquilo não passava de um mito. Os doentes em fase terminal apresentavam todo o tipo de características: ingenuidade, desespero, felicidade, loucura, medo, sensatez… Exatamente como os vivos. A única diferença era a sua data de validade. E as suas limitações físicas.

A paisagem tornou-se ainda mais bonita e bucólica à medida que avançavam para noroeste, em direção às Catskills, uma vasta reserva natural de montanhas, rios e bosques. Pouco depois, viram a placa que assinalava o seu destino: «Bem-vindos a Avalon. Um pequeno lugar com um grande coração».

As mãos de Claire apertaram-se inconscientemente sobre o volante. Nunca tinha vivido num lugar pequeno e a ideia de pertencer, nem que fosse apenas temporariamente, a uma comunidade fechada e fortemente unida fazia-a sentir-se muito vulnerável. Fosse paranoia ou não, tinha os seus motivos.

Nunca se tinha sentido realmente a salvo. Nem sequer no tempo que passara com a sua mãe, antes de começarem os problemas. A sua mãe, uma adolescente que fugira de casa, não era uma má pessoa. Simplesmente, uma toxicodependente abatida a tiro por traficantes de droga numa rua de Newark, deixando para trás uma filha de dez anos.

Muito poucos poderiam dizê-lo, mas, no caso de Claire, o sistema de proteção de menores mudara-lhe a vida por completo. Sherri Burke, a responsável pelo seu caso, assegurara-se de que ficasse com as melhores famílias de acolhimento possíveis. Ao experimentar pela primeira vez o que era a vida familiar, Claire aprendera o que significava fazer parte de uma coisa mais extensa e profunda do que ela mesma.

Para apreciar as bênçãos de uma família, só tinha de observar. Via-as em toda a parte. No olhar de uma mulher quando o seu marido entrava pela porta. Na mão de uma mãe sobre a testa de um filho com febre. Nas gargalhadas de duas irmãs a contar histórias ou na proteção de um irmão mais velho. Uma família era como uma rede de segurança que amparava uma queda. Como um escudo invisível que amortecia os golpes. Atrevera-se a sonhar com uma vida melhor. Com ter a sua própria família, casar-se e ser mãe. Com todas as coisas que faziam as pessoas sorrir e que proporcionavam um refúgio contra a tristeza e o medo. Segundo o sistema, tudo aquilo podia ser seu um dia. Desde que tudo acontecesse como era devido.

Mas, então, aos dezassete anos, tudo mudara. Claire fora testemunha de um crime e vira-se obrigada a esconder-se… A esconder-se de uma pessoa a quem tinha confiado a sua vida. Se isso não era motivo para se tornar paranoica, não sabia o que poderia ser.

Um lugar pequeno como Avalon podia ser muito perigoso, especialmente para alguém com um passado a esconder. Qualquer um que tivesse lido os livros de Stephen King o entenderia.

Se as coisas piorassem, teria de voltar a desaparecer. Pelo menos, era algo que sabia fazer bem. Tinha aprendido que a realidade não era como os filmes. Um simples assassinato não se considerava um crime federal, por isso, não podia recorrer ao WITSEC, o programa federal de proteção de testemunhas, financiado pelo governo e com um historial impecável. Pelo contrário, os programas locais sofriam invariavelmente de uma grave carência de fundos. Não agradava aos contribuintes gastar dinheiro naqueles programas para proteger testemunhas e informadores que, na sua maioria, eram também criminosos que ofereciam informação em troca de imunidade legal. Os inocentes como Claire eram uma exceção muito rara.

Com frequência, a proteção daqueles programas consistia num bilhete de ida de autocarro e algumas semanas num motel barato. Depois, a testemunha só contava consigo mesma para se proteger. E para uma testemunha como Claire, cuja situação era tão perigosa que nem sequer podia confiar na polícia, o seu único aliado era a sorte.

As famílias das quais tinha feito parte pareciam-lhe agora tão distantes e imprecisas como um sonho quase esquecido e já tinha abandonado a esperança de ter a sua própria família algum dia. Sim, poderia apaixonar-se e iniciar uma relação. Inclusive poderia ter filhos. Mas para quê? Que sentido tinha criar algo no qual depositar todo o seu amor se viveria sempre sob a ameaça de ser descoberta?

De modo que ali estava, longe da vida familiar e estável que tanto desejava, mas que nunca poderia ter. Tentava com todas as suas forças resignar-se à solidão e, embora o conseguisse às vezes, sentia-se quase sempre como uma folha agitada pelo vento.

– Já estamos quase a chegar – disse a George, depois de verificar a distância no GPS.

– Ótimo. A viagem é muito mais curta do que quando era criança. Naquela época, toda a gente vinha de comboio.

George não lhe explicara exatamente porque queria passar os seus últimos dias naquele lugar em concreto, nem lhe dissera porque fazia aquela viagem sozinho. Mas Claire sabia que acabaria por lhe contar na devida altura.

Com frequência, as pessoas realizavam uma última viagem no fim da sua vida, normalmente a algum lugar ao qual estivessem intimamente ligadas. Às vezes, era o sítio onde começara a sua história ou onde se produzira alguma mudança crucial. Também podia ser uma viagem em busca de paz e tranquilidade ou justamente o contrário, um destino onde havia assuntos por resolver. A razão pela qual George Bellamy tinha escolhido um lugar junto do lago Willow ainda era um mistério.

A estrada seguia o curso serpenteante de um ribeiro à sombra das árvores. Uma placa identificava-o como o rio Schuyler. O nome holandês pareceu a Claire tão pitoresco como a ponte coberta que se via ao longe.

– Nunca tinha visto uma ponte coberta, exceto em fotografias.

– Está ali desde que me lembro – disse George, inclinando-se ligeiramente para diante.

Claire examinou a estrutura, simples e nostálgica como uma canção antiga, pintada de vermelho e com telhado de madeira. Pisou o acelerador e sentiu uma curiosidade repentina pelo lugar que tanto parecia significar para o seu paciente. Talvez acabasse por ser um bom trabalho e, por uma vez na vida, se sentisse segura num sítio.

Estava a contemplar essa possibilidade quando um brilho azul e branco se refletiu no espelho retrovisor da carrinha. Um segundo depois, ouviu o som estridente de uma sirene.

Claire sentiu um calafrio que lhe percorreu todo o corpo e lhe paralisou os membros. Um terror muito familiar voltou a apoderar-se dela e, por um segundo, pensou em pisar o acelerador a fundo e empreender a fuga naquela carripana velha e pesada.

George devia ter-lhe lido o pensamento ou talvez a linguagem corporal.

– Na minha lista não consta uma perseguição – disse.

– O quê? – ruborizada e suada, levantou o pé do acelerador.

– A minha lista não inclui uma perseguição de carro. Acho que posso passar sem algo do género.

– Tenho ar de querer fugir? Vou parar na berma – disse ela, esperando que George não se apercebesse do tremor da sua voz.

– A voz está a tremer-te.

– Porque parar na berma me põe nervosa – respondeu ela. «Nervosa» era dizer pouco, já que mal conseguia respirar e o coração quase lhe saltava pela boca. Parou a carrinha na berma de cascalho e puxou o travão de mão.

– Estou a ver – replicou George tranquilamente e extraiu do bolso um maço de notas com um clipe dourado.

– O que estás a fazer? – perguntou-lhe ela, esquecendo momentaneamente a sua ansiedade.

– Presumo que seja necessário suborná-lo. É o normal nos países do Terceiro Mundo.

– Não estamos num país do Terceiro Mundo. Talvez não pareça, mas continuamos no estado de Nova Iorque.

O carro-patrulha, tão preto e reluzente como um rebuçado de chocolate, manteve as luzes ligadas, advertindo qualquer transeunte de que estava a proceder-se à detenção de um criminoso.

– Guarda isso! – ordenou a George.

Ele encolheu os ombros e guardou o dinheiro.

– Posso telefonar ao meu advogado.

– Parece-me um pouco cedo – olhou para o carro-patrulha pelo espelho retrovisor. – Porque está a demorar tanto?

– Está a verificar se há algum alerta para este veículo.

– E porque haveria algum alerta? – perguntou Claire. A carrinha fora alugada no nome de George e ela figurava como condutora autorizada. No entanto, a expressão de George fê-la suspeitar que ali havia gato. – George… – disse-lhe com tom de advertência.

– Primeiro, vamos ouvir o que tem a dizer o agente – respondeu ele. – Depois, podes gritar comigo à vontade.

O agente de polícia aproximou-se da carrinha por trás. Ao ver pelo espelho retrovisor como se aproximava, com a sua farda impecável, os seus óculos de sol espelhados, o seu queixo robusto barbeado e as suas botas brilhantes, Claire estremeceu de pavor.

– Carta de condução e documentos do veículo – pediu-lhe com tom tranquilo e autoritário.

Claire sentiu os dedos rígidos enquanto lhe entregava o seu documento. Estava tudo como devia ser, mas, mesmo assim, conteve a respiração enquanto o polícia o examinava. Na placa de identificação lia-se «Rayburn Tolley. Polícia de Avalon». George passou-lhe a pasta com os documentos da carrinha e ela entregou-a ao agente.

Mordeu o lábio e arrependeu-se de ter feito aquela viagem. Fora um erro grave.

– Qual é o problema? – perguntou ao agente Tolley com uma voz que denunciava o seu nervosismo. Por muito tempo que tivesse passado e por muitos agentes de polícia com que tivesse falado, nunca conseguia estar calma na presença de autoridades. Às vezes, até um simples agente de polícia a controlar o trânsito diante de uma escola bastava para que entrasse em pânico.

O agente olhou com o sobrolho franzido para a mão de Claire, que continuava a tremer.

– Diga-me você.

– Estou nervosa – admitiu ela. Com o passar dos anos, tinha aprendido a dizer a verdade sempre que possível. Assim, era-lhe mais fácil mentir quando não houvesse outro remédio. – Talvez pense que sou louca, mas põe-me muito nervosa ter de parar na berma.

– Menina, estava a conduzir a uma grande velocidade.

– A sério? Lamento, senhor agente. Não me dei conta.

– Para onde se dirige?

– Para um lugar chamado acampamento Kioga, junto do lago Willow – respondeu George. – E, se conduzia a uma velocidade excessiva, a culpa é minha. Estou impaciente por chegar.

O agente Tolley inclinou-se ligeiramente e olhou para George.

– Quem é o senhor?

– Alguém que começa a sentir-se acossado por si – disse George, visivelmente indignado.

– Não será, por acaso, George Bellamy? – perguntou-lhe o agente.

– O próprio – respondeu George. – Mas como…?

– Nesse caso, menina – interrompeu-o o agente, devolvendo a atenção a Claire, – devo pedir-lhe que saia do veículo e que mantenha as mãos onde eu possa vê-las.

Disparou-lhe o coração. Era a situação que mais receava desde que, muitos anos antes, tinha descoberto que andavam atrás dela. O princípio do fim.

A sua mente trabalhava a toda a velocidade, embora os seus movimentos se parecessem com os de uma marioneta. Deveria submeter-se? Tentar fugir?

– Ouça, senhor agente – disse George, – importa-se de me dizer o que está a acontecer aqui?

– George, este homem só está a fazer o seu trabalho – disse Claire, com a esperança de abrandar o agente. Indicou a George que ficasse sentado e saiu da carrinha como lhe tinham ordenado.

A pergunta de George não pareceu incomodar o agente Tolley.

– Recebemos uma chamada sobre si e a menina… – voltou a examinar a carta de condução, que continuava sobre a sua pasta – Turner. A chamada foi feita por um parente seu – leu o nome numa folha. – Alice Bellamy.

Claire olhou por cima do ombro para George.

– É uma das minhas noras – confirmou ele com tom de desculpa.

– Senhor, a sua família está muito preocupada consigo – disse o agente.

Claire não conseguia ver-lhe os olhos através dos óculos, mas podia ver a sua própria imagem refletida nas lentes. Cabelo preto pelos ombros. Olhos grandes e escuros. Um rosto normal e comum. Esse era o objetivo. Passar despercebida. Confundir-se com as outras pessoas. Que ninguém a recordasse.

Obrigou-se a manter a cabeça levantada e a fingir que estava tudo bem.

– É um crime preocupar a família?

O agente de polícia pousou a mão direita no coldre do revólver e Claire viu como o abria.

– Não se trata só disso… A família do senhor Bellamy tem graves suspeitas sobre si.

Claire engoliu em seco. Os Bellamy tinham dinheiro e recursos de sobra. Talvez a nora de George tivesse mandado que a investigassem a fundo e tivessem descoberto informações bastante inquietantes.

– Que tipo de suspeitas? – perguntou. O medo tinha-lhe secado a garganta.

– Oh, deixe-me ver se adivinho… – disse George e, incompreensivelmente, pôs-se a rir. – A minha família acha que me sequestraram.